Quando Ismália enlouqueceu

 Quando Ismália enlouqueceu,

Pôs-se na torre a sonhar…

Viu uma lua no céu,

Viu outra lua no mar.

    Alphonsus de Guimaraens


É loucura? Talvez… mas, afinal, o que é loucura? E o que é sanidade? No mundo veloz ao qual estamos sentenciados a viver, a loucura parece ser uma válvula de escape da realidade. No entanto, há tantos estigmas relacionados a esse termo que nos fazem acreditar que, nos quatro campos do conhecimento, o conceito de loucura converge e pode ser traduzido em um único sentido: algo que foge da realidade.

Na psicologia, a loucura é definida como um comportamento anormal. Para Foucault (Foucault, 1961, p.165-176;), na Idade Moderna, a loucura é tida como uma patologia, abrindo portas para um estudo do fenômeno entre a Psiquiatria e a Psicanálise. Para Lacan, as paixões do corpo afetam as vontades e as ideias, causando uma limitação da atividade da mente (LACAN, 1998, p. 25).

De todo modo, o conhecimento científico caminha lado a lado com o conhecimento popular quando a definição do termo pauta o anormal como pré-requisito para a loucura, podendo ser entendida como um distúrbio mental grave que afeta a capacidade do indivíduo de pensar, sentir e se comportar de maneira adaptativa à vida cotidiana. No dia a dia, o estar louco é agir fora de um padrão já estabelecido socialmente. Nesses casos, a loucura pode ser identificada em simples ações cotidianas, seja em um momento de grande felicidade ou de ações inconscientes. 

Para os beatos leitores deste blog, a loucura bíblica é descrita como uma ato de fé, já que “Deus escolheu o que para o mundo é loucura para envergonhar os sábios” (BÍBLIA, 1 Coríntios 1:27). Nesse caso, o mundo espiritual é para os que creem no poder do Espírito, pois através dele o impossível, ou seja, o que foge da realidade e, portanto, considerado loucura, se torna palpável. Entretanto, ainda sobre o conhecimento religioso, a bíblia descreve o louco como aquele que se rende às suas paixões e desejos, e as coloca acima de Deus. Nessa perspectiva, o ser louco parece convergir com a visão de Lacan citada anteriormente. 

Além disso, de forma constante, as escrituras sagradas falam acerca da importância do autocontrole da mente e dos desejos carnais. Nesse sentido, podemos entender que há duas noções de loucura segundo o conhecimento religioso. Uma de natureza divina, expressada no exercício pleno da fé, seguindo a doutrina dogmática. Enquanto a outra seria a “loucura dos ímpios”, podemos assim dizer, que parece trilhar caminhos segundo as suas próprias vontades. 

Já no âmbito filosófico, Platão, em sua obra Fedro, caracterizou a loucura “como um estado de êxtase divino que permite ao indivíduo ter acesso a conhecimentos que não estão disponíveis à razão humana” (PLATÃO, 380 a.C., p. 265). Aristóteles, entretanto, associa esse estado como uma perturbação patológica da alma que afeta a capacidade do indivíduo de agir de acordo com a razão. Na filosofia moderna, o filósofo alemão Friedrich Nietzsche também discutiu a loucura em sua obra, apresentando-a como uma possibilidade positiva para a criatividade e a liberdade, em contraposição à racionalidade limitante da sociedade (NIETZSCHE, 1886, p. 62). A filosofia tem várias definições e interpretações sobre a loucura ao longo da história, mas é possível destacar algumas das principais perspectivas.

Com isso, temos visões diferentes sobre o que loucura a partir dos quatro conhecimentos científicos: filosófico, popular, científico e religioso. Independente da época, do contexto social que impulsionou esse pensamento, percebemos que em vários pontos os conceitos convergem e, podemos até pensar que, a partir dessas definições que foram construídas ao longo do tempo, o conceito popular foi tomando forma no cotidiano, estruturados sob estigmas, mitos e verdades.

O impacto da filosofia no assunto ajuda a compreender a loucura como um fenômeno complexo e multifacetado, que envolve não apenas fatores biológicos, mas também sociais, culturais e históricos, convergindo até com conceitos religiosos quando comparado a um estado de êxtase divino. Além disso, essa área também questiona os métodos utilizados para tratar pessoas diagnosticadas com a doença ao longo dos anos. O campo religioso contribui para entender como outras culturas enxergam a loucura segundo as religiões. Esse estudo, entretanto, limitou-se apenas a fé cristã, mas existem uma gama de perspectivas que nos levam, inclusive, a entender o porquê da discriminação.

O conhecimento científico contribui para entender com mais profundidade os fenômenos, além de estudar o funcionamento do cérebro em lapsos de loucura, por exemplo. O conhecimento popular, por fim, ao meu ver, seria a convergência de todos os outros conhecimentos, impactando diretamente a forma como a loucura é vista na sociedade a partir de concepções populares passadas ao longo do tempo e baseadas em mitos e estereótipos. Em resumo, os quatro campos do conhecimento possuem impactos significativos na definição do que é considerado loucura.

Voltando ao nosso ilustre artista nato Alphonsus de Guimarães, podemos pensar em algumas justificativas para a nossa amiga Ismália: a) ela poderia estar em um estado de plenitude divina; b) ela poderia estar em um estágio elevado de liberdade e criatividade do ser; c) como descrito na Bíblia, Ismália pode simbolizar a loucura da fé e ter sido arrebatada; d) ela poderia estar em um estado de poderia estar em um estado de perturbação patológico, onde a única solução para silenciar as vozes de sua cabeça fosse voar para fora deste mundo. Quem sabe?

Agora, como toda boa discussão científica, ficamos com a pergunta: e o que seria sanidade em um mundo caótico?



Referências Bibliográficas

BÍBLIA. Português. Bíblia Sagrada. São Paulo: Edições Paulinas, 1995.

FOUCAULT, Michel. História da Loucura: na Idade Clássica. São Paulo: Perspectiva, 1961.

LACAN, Jacques. O Seminário: livro 5: as formações do inconsciente. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 1998.

PLATÃO. Fedro. Tradução Carlos Alberto Nunes. Belém: UFPA, 2011. (Coleção Textos Básicos de Filosofia).

NIETZSCHE, Friedrich. Assim Falou Zaratustra. Tradução de Mário da Silva. São Paulo: Companhia das Letras, 2011.

NIETZSCHE, Friedrich. Obras incompletas. Tradução Paulo César de Souza. São Paulo: Abril Cultural, 1974.


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